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Pau Para Toda a Obra

Um blog onde deixarei simples observações sobre o que vai acontecendo à nossa volta neste mundo global. Também serve de contacto com imensas pessoas que gostaram de mim.

Pau Para Toda a Obra

Um blog onde deixarei simples observações sobre o que vai acontecendo à nossa volta neste mundo global. Também serve de contacto com imensas pessoas que gostaram de mim.

eu li (17)

João Eduardo Severino, 13.12.23

Lila, 13 Dezembro.jpg

 

EU LI a obra de ANTÓNIO MANUEL COUTO VIANA, sob o título "Até ao Longínquo China Navegou...". Deste livro o extraordinário e saudoso poeta deixou-nos um marco histórico de literatura, que neste dia 13 de Dezembro, data do aniversário da minha querida e saudosa LILA, lhe dedico esta maravilhosa inspiração do autor.

CAMÕES E DINAMENE

ARGUMENTOS PARA UM BAILADO

"Até o longínquo China navegando",

Eis Camões em Macau; eis o poeta

Maior de Portugal, cantor da pátria

"Pelo mundo em pedaços repartida",

Ei-lo, na gruta que lhe herdou o nome, 

Compondo oitavas de heroísmo e espumas,

Quando lhe surge, súbito, entre as fragas, 

Um vulto de mulher: doçura e enleio,

Em formas orientais; delicadeza;

Um desenho a manequim, subtil e belo,

Num leque a abrir-se em seda branda e pálida.

Mulher ou deusa? Inspiração ou corpo?

Ele enlaça a visão, afaga-a, beija-a.

O sangue que lhe corre ao coração

É um "fogo que arde sem se ver",

Chama-lhe a sua Dinamene, a "ninfa

Gentil" destas paragens ardorosas.

Ela envolve-o de sonho e de desejo.

Leva-o, com ela, pelas praias; somem-se

Ambos pela espessura do arvoredo

Onde o amor mais íntimo se oculta

E se entrega entre lágrimas e risos.

Ela é a própria terra que se oferece

Ao ímpeto do abraço português,

Leal, fecundo, aventureiro e amante...

E ambos, um dia, partem deste idílio

A prosseguir o idílio noutras praias,

Noutro arvoredo generoso e ledo.

Fazem-se ao mar. Lá vão! Desfraldam velas

Que tempo de bonança! Mas o vento

De repente se volve furioso

E a onda encrespa, as velas esfarrapa, 

Decepa os mastros, despedaça o leme...

E fendida e sem rumo a nau naufraga

No pavor do imenso abismo aberto,

Separando, cruel, dois corações

Que pulsavam uníssonos e alto.

Uma vaga mais rápida e voraz

Logo arrebata Dinamene e foge, 

Com ela rola, rugidora... A ninfa

Debate-se, implora auxílio, acena

Ao vulto do amante que se esfuma,

Levado noutra vaga... E, num adeus,

O nome lhe murmura... e submerge!

E Camões? Ei-lo, vem erguendo o braço.

Na mão fechada, o canto que, molhado, 

Salva deste "naufrágio miserando".

Salvando a pátria, viva na epopeia, 

Morre-lhe o coração com Dinamene!

Na praia, entre destroços, suspirando,

Recorda aquele amor tão puro, e o pranto

Dita-lhe versos que a saudade escreve:

"Ai minha Dinamene! Assim deixaste

Quem nunca deixar pôde de querer-te?

Que já, ninfa gentil, não posso ver-te,

Que tão veloz a vida desprezaste?

Como por tempo eterno te apartaste

De quem tão longe andava de perder-te?

Puderam essas águas defender-te

Que não visses quem tanto magoaste?

Nem somente falar-te a dura morte

Me deixou, que, apressada, o negro manto

Lançar-se sobre os teus olhos consentiste.

Ó mar! Ó céu! Ó minha escura sorte!

Qual vida perderei que valha tanto

Que inda tenho por pouco viver triste?"

E, de bruços, na areia, soluçava,

Juntando, ao sal do mar, o sal das lágrimas,

No canto que apertava contra o peito

Como se fora a sua Dinamene.

E nas águas dos olhos, dir-se-ia

Ver, entre as ondas, aflorar a amada.

E a imaginação que o atormenta

Novos versos lhe dita, angustiados:

"Quando das minhas mágoas a comprida

Maginação os olhos me adormece, 

Em sonhos aquela alma me aparece

Que para mim foi sonho nesta vida.

Lá numa saudade, onde estendida

A vista por o campo desfalece,

Corro após ela; e ela então parece

Que mais de mim se alonga complicada.

Brado: Não me fujais, sombra benina.

Ela, os olhos em mim, em brando pejo,

Como quem diz que já não pode ser,

Torna a fugir-me. Torno e brado: Dina...

E antes que diga mene, acordo e vejo

Que nem um breve engano posso ter".

Ah, ainda viver, e o coração

Já morto e os olhos cegos para aquela

Alma sua, gentil, que se partira

Para os céus e na terra o deixa, triste!

Ah, porque não rogar a essa visão,

Em prece comovida, e a mais bela

Que a voz de um poeta há-de elevar jamais,

Que rogue a Deus piedoso o eterno encontro

De um só amor que uniu dois corações

Apartados tão cedo? E Camões reza:

"Alma minha gentil, que te partiste

Tão cedo deste corpo descontente, 

Repousa lá no céu eternamente

E viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento etéreo, onde subiste, 

Memória desta vida se consente,

Não te esqueças daquele amor ardente

Que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te

Algua cousa a dor que me ficou

da mágoa sem remédio de perder-te, 

Roga a Deus, que teus anos encurtou,

Que tão cedo de cá me leve a ver-te

Quão cedo de meus olhos te levou".

Mas Deus recusa a morte a quem lha pede:

Há-de o poeta terminar o canto.

Se o não termina, Portugal é mudo.

E Deus deseja que esta pátria seja

A palavra do mundo. E Os Lusíadas

São a fonte e a raiz dessa palavra.

Então, Camões inclina a fronte e aceita

Mas, quanta vez, a sua Dinamene

Lhe aparece, nos sonhos, a inspirá-lo, 

A tomá-lo nos braços, a fastar-lhe

A espada das vitórias evocadas,

Fazendo a pena suspirar saudades.

Num breve instante lírico e dorido.

E é neste arroubo, neste encantamento,

Nesta ferida a sangrar que "não se sente",

No êxtase da musa e do poeta,

Que Camões vive o verso que compôs:

"Para tão grande amor, tão curta a vida"!